Complexo de vira-lata e o futebol brasileiro na Copa do Mundo de Clubes
A Copa do Mundo de Clubes coloca o futebol brasileiro frente a frente com seu maior algoz: a ideia que tem de si mesmo
Já faz quase 70 anos que Nelson Rodrigues eternizou em suas crônicas o seu diagnóstico para o futebol brasileiro: o complexo de vira lata. Era logo antes da Copa do Mundo de 1958, e a seleção brasileira ainda vivia à sombra da “mãe” de todas as suas derrotas: o Maracanazo em 1950. Enquanto o time se preparava para mais uma participação em Copas, Rodrigues escreveu:
“Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol"
Equipe brasileira campeã do mundo em 1958.
O Brasil voltou da Suécia em 1958 com o título de campeão do mundo, construindo a alcunha de “país do futebol” com uma sucessão incrível de três títulos (1958, 1962 e 1970), e o maior jogador de futebol de todos os tempos, Pelé, encantando o mundo com seu talento. De lá para cá, apesar dos 24 anos que separaram o tricampeonato do tetra em 1994, o Brasil se firmou como um país que vivia o futebol na sua essência, sinônimo de jogo bonito e uma safra constante de craques: Garrincha, Pelé, Falcão, Zico, Sócrates, Romário, Ronaldo, Ronaldinho, Kaká...
Mas em algum momento do final da década de 1990 até hoje, algo se perdeu. Não são “só” as performances ruins nas Copas do Mundo, alcançando o maior jejum de títulos da história brasileira. São os jogadores promissores que não se concretizam e uma falta de fé no nosso próprio potencial, misturada com uma crença contrastante de que a qualquer momento o craque apareceria e resolveria tudo. Um ciclo vicioso, dominado pelo “viralatismo” apontado por Rodrigues lá atrás. Mas complexo a parte, é fato queo futebol mudou, e o Brasil ficou para trás.
Mas a performance dos brasileiros na Copa do Mundo de Clubes, ainda que na primeira fase, nos permite sonhar que tem solução.
O exportador de craques e a nova ordem do futebol
Ao longo das últimas décadas do século XX, a proibição ou limitação de jogadores estrangeiros caiu pouco a pouco na Europa. Itália, Espanha, Inglaterra, voltaram seus olhares para jogadores de fora do próprio continente, principalmente se interessando por jogadores sul-americanos. No Brasil, a partir de meados da década de 1980, inúmeros destaques dos times brasileiros rumaram para o futebol europeu, especialmente o italiano, como Falcão, Zico, Júnior e Sócrates - todos parte da última seleção brasileira com maioria dos jogadores atuando no Brasil, que foi a campo na Copa de 1982.
O jogador de futebol ganhou uma peculiaridade: é atleta e mercadoria. Além da abertura do mercado europeu, mudanças como o fim da Lei do Passe e o caso Bosmanm contribuíram para a regulamentação das vendas de jogadores. Pesquisadores do assunto destacam como agora: “o futebol brasileiro se insere de forma subordinada dentro desse mercado do futebol”.
Da década de 1990 em diante, jogadores brasileiros cada vez mais novos saem do país todo ano para jogar em ligas europeias, com valores batendo recordes atrás de recordes. Em 2023, pesquisa da CIES Football Observatory mostrou que o Brasil era o líder absoluto no ranking de maior exportador de jogadores do mundo, com mais de mil atletas jogando em cem países diferentes. Ainda em 2023, o faturamento do país em venda de jogadores foi de mais de 2 bilhões.
Só para falar de valares dos últimos anos, a venda de Neymar por 88 milhões de euros continua sendo a maior da história do país, mas o pódio ainda conta com Vitor Roque, vendido por 74 milhões de euros também para o Barcelona, Endrick, por 72 milhões para o Real Madrid, e Vinícius Jr e Rodrygo, ambos por 45 milhões para o Real Madrid. De todos esses atletas, Neymar foi o que saiu mais velho do futebol brasileiro, aos 21 anos, após conquistar um campeonato brasileiro e uma Libertadores pelo Santos, time que o revelou. Todos os outros foram direto para o futebol europeu assim que completaram 18 anos.
Os valores enormes mostram que as finanças do futebol europeu são sim muito superiores à dos brasileiros. Regras como o fairplay financeiro de ligas locais e da própria UEFA, além da transformação do futebol europeu em um produto lucrativo para times e federações, criou uma distância econômica difícil de ser transpassada. Nos últimos anos, os confrontos entre clubes europeus e brasileiros foram raros, restritos as finais dos intercontinentais quando os brasileiros conseguiam ganhar a Libertadores (e chegar na final do Mundial).
A saga brasileira na Copa do Mundo de Clubes
O novo formato de mundial proposto pela FIFA, chamado de Copa do Mundo de Clubes, foi polêmica desde seu anúncio. O presidente da UEFA até mesmo se posicionou contra a realização do torneio, aumentando as tensões entre UEFA e FIFA. Marcada para junho, a competição cai no final do calendário europeu, diferente do intercontinental, que é disputado no fim do ano, meio da temporada europeia e fim da temporada sul-americana.
No sorteio, todos os brasileiros foram sorteados em grupos com pelo menos um europeu: o Palmeiras enfrenta o Porto, Botafogo no mesmo grupo que PSG e Atlético de Madrid, Flamengo encontra o Chelsea e Fluminense joga contra o Borussia Dortmund. O discurso do sorteio até o início do mundial foi um só: vencer os outros adversários do grupo, e contar com uma derrota para os europeus – um empate, no máximo.
Mas a primeira rodada já foi promissora: Palmeiras e Fluminense empataram com Porto e Borussia. Mais não só isso, foram empates com grande domínio dos times brasileiros. Com a sensação de que se acreditassem mais um pouquinho, era possível mais do que competir, mas sim ganhar. Foi exatamente o que aconteceu na rodada seguinte: vitórias heroicas de Botafogo (atual campeão da Libertadores) contra o PSG (atual campeão da Champions League) e Flamengo (campeão da Libertadores em 2022) contra o Chelsea (campeão da Champions em 2021).
Jogadores do Flamengo comemoram gol contra o Chelsea.
A euforia vem muitas vezes misturada com desculpas ecoadas pelos próprios europeus: é fim de temporada, faz muito calor, os horários são ruins... Mas antes de sermos contaminados pelo nosso viralatismo, o top 4 times que mais jogaram no último ano são os quatro brasileiros. A distância econômica é enorme, mas não completamente intransponível.
O futebol brasileiro tem se atualizado. A chegada de técnicos estrangeiros, principalmente portugueses, mudou o cenário do futebol no país, atualizando taticamente a forma de jogar dos times brasileiros. Palmeiras e Botafogo, inclusive, estão no Mundial com técnicos portugueses, enquanto o Flamengo é comandado por Filipe Luis, brasileiro que jogou anos na Europa e admite ter em Jorge Jesus uma de suas maiores inspirações como treinador.
Independente do fato de que a competição está no começo, ou das desculpas europeias, a performance dos brasileiros nessa fase de grupos, com todos podendo se classificar em primeiro em seus grupos, já pode sim ser discutida como histórica. E pode nos permitir sair do vitimismo do complexo de vira-lata, definido por Nelson Rodrigues e que perseguiu o futebol brasileiro desde então, olhando para o futebol brasileiro como possível de evolução, e que estamos assistindo essa evolução ao vivo. Organização econômica dos clubes, formação de uma liga mais forte no futebol brasileiro, fairplay financeiro... O caminho é longo, mas possível.
Finalizando com as próprias palavras de Rodrigues:
“O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender.”
Referências
TERRA, Camila Rubim. O papel subordinado do Brasil no mercado de transferência de jogadores. Ludopédio, São Paulo, v. 187, n. 20, 2025.
Rodrigues, Nelson. "Complexo de vira-latas." À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo, Cia das Letras (1993): 61-63.
SZYMANSKI, Stefan. Dismal ticket sales, grumblings from fans and clubs – is FIFA’s latest attempt to establish a global club game doomed before it starts?. Ludopédio, São Paulo, v. 192, n. 22, 2025.
O que mais me chamou atenção não foi os times daqui fazerem frente aos europeus. Aliás, isso de início né, porque o único que fez frente mesmo foi o Botafogo, ao longo das rodadas vimos o quão Borussia, Chelsea e Porto são bem mais ou menos. Mas enfim, o que mais me chamou a atenção foi o comportamento dos jogadores, sem aquelas infinitas rodas ao redor do juiz e a cera que não tem fim, o famoso anti-jogo tão comum por aqui e que é um desrespeito ao esporte e à torcida. O comportamento tão pianinho dos jogadores por lá, quem diria? E o Abel, pela primeira vez na vida se comportando com o mínimo de decência no comando da Lazio de Perdizes.
https://open.substack.com/pub/luisobral/p/so-faltava-ao-mundial-uma-rivalidade?r=rrhv&utm_medium=ios
Sobre o mesmo tema, escrevi há uns dias esse texto, caso lhe interesse.