Ditadura chilena na Libertadores da América: o caso Cobreloa
Como um clube financiado pela ditadura quase conquistou a América (2x)
O Colo-Colo é até hoje o time mais conhecido do Chile, e pode ter ficado com a fama de “time da ditadura”, mas foi um outro companheiro de campeonato chileno que verdadeiramente passou perto de conquistar a maior competição da América Latina durante os anos do governo de Pinochet: o Cobreloa. Mas antes, é preciso contextualizar o que foi a ditadura chilena, que durou de 1973 até 1990.
Em 1970, nas eleições gerais chilenas, o candidato Salvador Allende, da Unidade Popular, coligação de partidos de esquerda chilenos, obteve a maioria dos votos, em votação disputada nos formatos diretos e indiretos. Allende assumiria o cargo em novembro de 1970, e ocuparia a posição até sofrer um golpe militar em 1973. As tensões políticas no país se agravavam durante o governo de Allende, e em setembro de 1973, após algumas semanas de planejamento – e uma ajuda dos EUA, por meio da Operação Condor – o golpe foi executado pelas Forças Armadas e Marinha chilenas em 11 de setembro. Allende, se negando a sair do cargo, acabou assassinado dentro do Palácio de La Moneda, mas não sem antes realizar um emocionante último discurso na rádio.
Imediatamente após o golpe, o Estádio Nacional, em Santiago, receberia presos políticos da ditadura. O local foi utilizado como prisão nesse primeiro momento, com presos alojados nos camarotes e interrogatórios no velódromo. Cerca de 40 mil prisioneiros passaram pelo Estádio Nacional, incluindo muitos que acabariam mortos ou desaparecidos.
No livro “Colo Colo 1973, el equipo que retrasó el golpe”, o jornalista Luiz Urrutia traz a ideia de que o time da capital chilena teria até mesmo adiado o golpe de certa forma, já que estava em campanha na Libertadores, e quando o clube jogava, o país permanecia unido. O Colo-Colo até chegou a final, mas perdeu para o Independiente da Argentina – e três meses depois, o golpe militar acontecia no Chile.
Muito menos famoso que o Colo-Colo, o clube Cobreloa foi um destaque chileno no começo da década de 1980. Fundado em 1977, na cidade de Calama, região Antofagasta, o Cobreloa tinha apenas 4 anos quando chegou a sua primeira final de Libertadores, em 1981. O clube fez parte de um projeto da ditadura chilena de acessar áreas geográficas mais distantes, que no primeiro momento, incluiu Cobreloa (Antofagasta), Deportes Arica (Arica e Parinacota), Regional Atacama de Copiapó e Cobresal (Atacama). Calderón indica que “la fundación de Cobreloa obedeció a una estrategia de la dictadura de llevar al fútbol como agente aglutinador ante las difíciles situaciones fronterizas (...)”. A direção e financiamento do clube eram feitas pela Corporación Nacional del Cobre de Chile, criada pelo governo em 1976.
Escudo Cobreloa / Conmebol
O clube ganhou destaque após uma ascensão meteórica na Libertadores de 1981. Na época, a competição era dividida em duas fases de grupo, uma inicial, separada por país, e uma semifinal. Parte do grupo 5, com times do Chile e Peru, o Cobreloa passou de fase com nove pontos, superando os adversários Sporting Cristal, Universidad do Chile e Atlético Torino. Na fase semifinal, passou dos tradicionais Peñarol e Nacional, do Uruguai, chegando à final do torneio continental. Na final, o clube chileno enfrentou o brasileiro Flamengo – ambos em busca dos seus primeiros títulos na competição.
O primeiro jogo da final foi realizado no Maracanã, com público de 94 mil torcedores no estádio. Em campo, dois gols dos pés de Zico colocavam o rubro-negro carioca na frente da final da Libertadores. Mas ainda tinha o jogo da volta, a ser realizado no Chile – e o Cobreloa fez um precioso gol no Maracanã.
Embora fundado em uma região distante da capital, o Cobreloa executou seu mando de campo no Estádio Nacional, principal estádio do Chile. O próprio Pinochet compareceu ao jogo, com direito a sim discurso e tudo na frente dos 62 mil torcedores que lotaram o estádio. Em campo, 1x0 para o Cobreloa, com gol de Merello. Fora de campo, algumas polêmicas que podem ou não ser conhecidas dos torcedores brasileiros. A partida foi bastante disputada, com muitas faltas e lances que se acontecessem em 2024, provavelmente resultariam em ações do VAR.
Libertadores da América - Flamengo 2 x 1 Cobreloa / Foto Sebastião Marinho / Agência O Globo
Jogadores do Flamengo relembram a visita ao Chile como tensa, como nas palavras de Júnior:
“O Pinochet usou um pouco o Cobreloa naquele período para fazer com que o chileno se sentisse orgulhoso de alguma coisa, em função de tudo que acontecia politicamente dentro do país. Então, se criou um clima daqueles que a gente nunca tinha vivido aqui, por mais que a gente tivesse jogado em campos difíceis, mas desde o hotel até o estádio, o clima era realmente um clima tenso e complicado, porque depois a gente começa a ter a dimensão das coisas. O que aquilo representaria para o Cobreloa, sobretudo para o país, infelizmente ia representar para o regime também se eles tivessem ganhado, porque eles iam colocar o futebol como grande veículo político de ascensão, de uma série de coisas, encobrindo muitas coisas que aconteceram.”
Com o confronto empatado, a solução foi realizar uma partida desempate em campo neutro: no Estádio Centenário, no Uruguai. Dessa vez, mais uma vitória do Flamengo, por 2x0, com gols de Zico. O rubro negro era campeão da Libertadores pela primeira vez, e o Cobreloa voltava para casa sem o título.
Mas a derrota não desanimou o time chileno, que repetiu o feito em 1982 e chegou até mais uma final da Libertadores. Dessa vez no grupo 4, mais uma vez o Cobreloa passou com facilidade para as semifinais, onde derrotou Olimpia e Deportes Tolima para garantir a vaga na final, para enfrentar o Peñarol. No jogo de ida, disputado no Estádio Centenário, um empate sem gols que levava a decisão para o Chile.
De novo jogando no Estádio Nacional, para mais de 74 mil torcedores, o Cobreloa se viu superado pelos uruguaios nos últimos minutos da partida. Rememorando a vitória, o autor do gol do Peñarol, Fernando Morena, diz que “El gol sobre la hora fue devastador para ellos, porque significaba que no había espacio para la reacción. Gol y triunfo”, ao passo que Victor Merello, capitão do Cobreloa, completa “El silencio que hubo después del gol lo dice todo”.
Mesmo sem o título da Libertadores da América, em 1982 o Cobreloa conquistou seu segundo campeonato chileno. Aos poucos, embora ainda bastante presente e respeitado no cenário nacional, o Cobreloa perdeu espaço na maior competição do continente. Atualmente, o clube ocupa a 14ª posição do campeonato chileno.
Já a ditadura chilena durou até 1990. Em 1988, um plebiscito decretou a restauração da democracia, o que foi concretizado em março de 1990, com a eleição de Patricio Aylwin Azócar. Ainda assim, a transição política do Chile manteve a constituição da ditadura, e garantiu que o sistema do país passasse pelo processo sem muitas alterações. O Estádio Nacional, que foi utilizado como prisão pela ditadura chilena nos seus primeiros meses, foi reformado, mas manteve parte da arquibancada original, que virou um memorial, mantendo a “salida 8”, por onde os prisioneiros passavam, e exibindo a frase “um pueblo sin memoria es um pueblo sin futuro”.
E é com essa reflexão que fecho: a discussão memória é fundamental, no esporte e fora dele. Seja em períodos democráticos ou ditatoriais, o futebol está em constante diálogo e reflete as mudanças na sociedade – o futebol no Chile não é exceção.
Referências
Brescia, Mariana; Lage, Marcus Vinícius Costa. Colo-Colo, 95 anos: de instrumento da ditadura à resistência antifascista. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 26, 2020.
Calderón, P. A. S. (2022). Un balón con comba violenta: el fútbol chileno durante la dictadura militar de Augusto Pinochet (1973-1987). Quirón. Revista de Estudiantes de Historia, (Especial), 8-31.
La historia de los duelos entre Cobreloa y Peñarol. Diário Antofagasta, 9 de julho de 2013. Disponível em: https://www.diarioantofagasta.cl/regional/24280/la-historia-de-los-duelos-entre-cobreloa-y-penarol/
Júnior, Leogevildo Lins da Gama. Júnior, entrevista [set. 2012]. Entrevistadores: Edison Luis Gastaldo e Simoni Lahud Guedes. Rio de Janeiro – RJ. Entrevista concedida ao projeto Futebol, Memória e Patrimônio, parceria do Museu do Futebol com o CPDOC/FGV e apoio da FAPESP.