Um conto de dois esportes: o futebol e o remo no Rio de Janeiro
Como o esporte tomou conta da capital carioca
A história do Rio de Janeiro com o esporte é formada por alguns capítulos. Se hoje o futebol domina as terras cariocas, nem sempre esse foi o caso: o remo foi o primeiro amor esportivo do Rio. A relação entre futebol e remo é tanta que até hoje três dos principais clubes da cidade ainda levam “regatas” no nome.
Os esportes, de um modo geral, foram inseridos na dinâmica das cidades ao mesmo tempo em que se inaugurou a modernidade burguesa. No caso do Brasil, as atividades físicas, até o final do século XIX, eram vistas como degradantes. As heranças de uma sociedade colonial e escravista são óbvias razões pelas quais a prática de atividades físicas não era apreciada pela elite local, sendo no máximo praticados os esportes da nobreza europeia (esgrima, caça).
Na Europa, a partir do século XIX que colégios ingleses passaram a jogar modalidades do ancestral do futebol (conhecido como folk football) e outros esportes como fundamentais para a educação, iniciando a máxima da “mente sã, corpo são” e associando a prática esportiva ao desenvolvimento saudável do homem. Outros esportes também ganharam destaque na Inglaterra, favorecidos pelo estabelecimento da burguesia e do operariado, e a possibilidade de se criar um mercado consumidor para as práticas esportivas.
Dentre os esportes praticados no Brasil, a maioria tinha sua origem atrelada a Inglaterra. Antes do mais famoso deles, o futebol moderno, que vem posteriormente, o Rio de Janeiro contava com clubes de críquete. As corridas de cavalos também se tornaram mais populares, sendo o turfe o primeiro esporte organizado a fazer sucesso no país no século XIX, ainda muito marcado pelo apelo aristocrático. Apesar disso, o grande fenômeno esportivo do Rio no XIX e início do XX era outro: o remo.
O remo: o esporte toma o mar
Sendo o Rio de Janeiro uma cidade que além de contar com um litoral, tem uma lagoa e uma baía a disposição, o remo rapidamente se tornou o esporte favorito da elite local. Mas, para que isso pudesse acontecer, foram necessárias algumas mudanças posteriores, sendo as maiores delas o surgimento de um campo esportivo no Brasil e a ressignificação da cidade do Rio de Janeiro com o mar.
Oficialmente, a primeira corrida de canoas foi registrada em 1846, e foi um acontecimento social que mobilizou o público. Apesar disso, ainda houve uma demora até que a prática se tornasse organizada, com as primeiras entidades dedicadas apenas a prática de regatas sendo inauguradas em 1862: o clube Regatas e o British Rowing Club. Mas foi em 1974, com o Club Guanabarense, que o remo realmente começou a ser estruturado no Rio de Janeiro.
Evidenciando a popularidade do esporte, vários clubes de remo foram formados no Rio nos anos finais do século XIX, incluindo o Clube de Regatas do Flamengo (1895), Clube de Regatas de Botafogo (1894), Clube de Regatas Icarahy (1895, em Niterói), Clube de Regatas Vasco da Gama (1898), para citar alguns exemplos. Ainda que já fosse um esporte popular, representado especialmente pelo Clube Vasco da Gama, formado por descentes de portugueses residentes no bairro da Saúde, alguns autores afirmam que o remo foi privilegiado pelas reformas de Pereira Passos, porque estas abriram mais a paisagem local e assim fizeram aumentar o interesse em acompanhar as competições de remo.
As regatas reuniam multidões, mas eram praticadas por poucos. O remo necessitava de equipamentos especiais para ser praticado, o que fez com que no início ficasse restringido a uma minoria, que tinha recursos para comprar os equipamentos.
Futebol: a bola ganha o povo
O futebol foi ganhando popularidade durante o início do século XX, e apesar dos grandes clubes serem formados pela elite brasileira, foram se multiplicando os clubes populares. Muitos dos clubes que começaram como exclusivos para a prática de remo, fundaram times de futebol, como foi o caso de Botafogo, Vasco e Flamengo, sendo o futebol no último sendo implementado por uma dissidência entre os membros do Fluminense – criado exclusivamente para a prática de futebol. O futebol começava a se firmar, então, como um esporte apreciado pelos brasileiros.
O futebol tinha uma vantagem sobre outros esportes: a facilidade de praticar. Basta um objeto esférico, um espaço para usar de campo e pronto, é uma partida de futebol. Mesmo com a possibilidade se ser praticado em qualquer terreno e com qualquer objeto que remotamente se assemelhasse a uma bola, o comércio não demorou a lucrar com o futebol. Já em 1903, a Casa Clark anunciava “artigos inglezes, calçados, bolas, caneleiras, bombas”18. Possuir esses artigos era o símbolo de distinção que a elite precisava para continuar praticando o esporte que se tornava cada vez mais popular. Apesar disso, um trabalhador podia, se quisesse, investir em pelo menos uma bola de futebol que custava em torno de cinco ou seis mil réis nesse início de século19, o que era caro, mas podia ser espremido no orçamento da população menos abastada principalmente se levado em conta que era um item de duração de longa a média.
Outra característica importante para a popularização do futebol eram as partidas, antes da organização de campeonatos, que muitas vezes durante seus primeiros anos, fazia partidas com ingressos gratuitos, que que contribuiu para que o futebol fosse visto por uma parcela da população que não tinha condições de frequentar as pelejas mais elegantes. Ou, como no caso do Flamengo, os primeiros treinos do time de futebol eram feitos na Praia do Russel, o que atraia muitos observadores. Apesar da origem na elite e dos seus jogadores da época serem parte da classe mais abastada, pode-se apontar que esses treinos a céu aberto foram o início da ressignificação com o popular que esse clube sofreu através dos anos. No mais, sem especular, ocasiões como essa são perfeitas para exemplificar que, nesse sentido, apesar do distanciamento que os clubes de elite tentavam manter da camada popular, acabavam agregando essas pessoas e contribuindo para que se tornasse um esporte cada vez mais popular.
Assim, com a popularização do futebol e a criação de outros clubes de origem popular seguindo o exemplo do Bangu, como o Andaraí Football e Athletic Club, ligado a Fábrica Cruzeiro, surgiu a necessidade se formar uma liga de futebol e organizar os campeonatos de maneira mais formal. Foi nesse contexto que surgiu a Liga de Football do Rio de Janeiro, em 1905, mas essa organização não incluía todos os times de fábrica ou origem popular, apenas o Bangu e o Andaraí. Os demais clubes de origem popular criaram, em 1907, a Liga Suburbanna, que não era a principal liga da cidade, mas permitia que os times das classes mais baixas participassem de competições no mesmo molde da principal.
Essas ligas evoluíram, através dos anos, e culminaram na 1º e 2ª divisão do futebol carioca. Alguns clubes, como o próprio Bangu, tentaram em algum momento criar competições próprias, que não alcançaram o prestígio dos campeonatos organizados pelas ligas. A dinâmica social era muito importante nesses campeonatos, uma vez que a separação em divisões exemplificava que, apesar da popularização do esporte da criação de clubes populares, o futebol tentava manter sua elite separada da população menos privilegiada, segregando o ambiente esportivo, ainda que dentro de uma mesma modalidade.
A história dos esportes no Rio de Janeiro se desenvolve em intersecção com a cidade, tão ligados quanto o possível. A construção do Maracanã, o imaginário do maior estádio do país (e na época do mundo) marcou não só o futebol carioca, mas o nacional, tornando o Rio, de fato, uma cidade entre dois esportes.
Referências
SOUZA, Glauco José Costa; “O football nós podemos jogar”: uma análise sobre o desenvolvimento do futebol fora dos clubes da elite do Rio de Janeiro. Recorde, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 1-28, jul./ dez. 2015.
MELO, Victor Andrade de. O Mar e o Remo no Rio de Janeiro do Século XIX. Estudos Históricos, 1999.
GUTERMAN, Marcos; O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país. São Paulo: Contexto, 2009.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, cultura, sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.